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Gil Vicente Tavares
Publicado em 28 de maio de 2025 às 05:00
A Fundação Gregório de Mattos (FGM) acaba de lançar um edital, intitulado Chamadão. Dentre as ressalvas ao edital, uma coisa me chamou mais a atenção. Trata-se dos critérios relativos ao mérito artístico da proposta, com peso 3, de 10:
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“Serão analisados aspectos como originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação da proposta”.>
Prontamente me lembrei do espetáculo Longa jornada noite adentro, com direção de Harildo Déda. Como é um edital que contempla também remontagens, retornos e temporadas, fiquei imaginando se a equipe, até como um tributo a Harildo, resolvesse inscrever o projeto.>
A chance de ter uma pontuação baixíssima seria grande.>
Montar um Eugene O’Neill? Nada original. A montagem de Harildo não tinha, aparentemente, nada de “singular”. Nem de “criativa”. Um dos grandes méritos da montagem era a leitura sensível do caráter impressionista da peça, super anti-”expressivo”. Nada “autêntico” montar um autor dos EUA, já montado e remontado no mundo todo, pela milésima vez; algo nada, nada, nada “inovador”.>
Fiquei pensando na peça Não me entrego, não, com o incrível Othon Bastos, que acabei de assistir. E fiquei pensando no quanto uma comissão poderia desqualificar o espetáculo a partir dos critérios escolhidos pela FGM.>
Meu pai, um grande intelectual, sempre me repetia que não existia nada de novo depois dos gregos. E com certeza, a frase não era nova, nem era dele. Claro que sei que intelectual e Grécia são coisas rechaçadas pela nova ordem das coisas, mas o padre António Vieira, o imperador da língua portuguesa, já falava: “o novo é o velho revisitado” (ancestralidade conta, nesse caso?).>
Pois é. Salvador tem uma mania de ficar dentro do útero, como diz Caetano em sua letra Neguinho. Giramos em torno do nosso umbigo e a busca por originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação parecem, ingenuamente, ser a ambição daqueles que mal aprenderam a engatinhar e já querem dar salto mortal triplo carpado. E muitas vezes são recompensados pelo pulo atabalhoado. >
O Brasil acaba de ganhar dois prêmios em Cannes, e recentemente ganhou seu primeiro Oscar com Ainda Estou Aqui. Motivo de festa para nós, o que de originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação tem este filme, por exemplo, eu não sei. E imagino que não foi por nenhuma dessas razões que resolveram premiar a obra.>
Provavelmente, pasmem, premiaram Ainda Estou Aqui porque viram qualidades nele.>
Sim, ainda há comissões que analisam qualidade da perspectiva da obra dentro do que ela se propõe; não em comparação com outras formas e estilos, com seus gostos e preferências, com seus ressentimentos, amizades, e não por ela se inserir nos cânones que parecem reger ética e esteticamente a arte atual.>
Eis a contradição mais doida. Por vezes, as comissões parecem buscar originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação em projetos que se repetem exaustivamente nas mesmas estéticas. Fala-se em “futuro ancestral”, pululam projetos e mais projetos ancorados no ado, e as comissões seguem (ignorância ou adesismo às modas?) julgando o antigo como vanguarda.>
Nada pior do que dar argumentos frágeis como esses a comissões que, seguidamente, já têm mostrado fragilidades em seus critérios.>
Dei um google em busca de outros editais que citassem os questionáveis critérios. E de TCA Núcleo a editais Brasil afora, as palavras inovação e originalidade, ao menos, se repetem. Estamos tramados, como diriam os portugueses.>
É curioso ver Othon Bastos, em seu espetáculo, contando como perdeu, no colégio, uma disputa para recitar uma poesia. Enquanto ele havia recitado o poema narrando os fatos, compreendendo na fala o que o texto dizia, de maneira natural, a vencedora havia se esgoelado, fazendo gestos, caras e bocas, um monte de presepada. E acabou ovacionada por isso. Provavelmente por ter muita originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação. >
A professora fez Othon jurar que ele jamais faria teatro.>
Quem jamais fez teatro foi a menina.>
E Othon fez sua trajetória ando por alguns dos mais importantes momentos do teatro e cinema brasileiros.>
Apesar de rememorar com carinho um momento auge de sua carreira, em 1973, quando fez no teatro Um Grito Parado no Ar e São Bernardo no cinema, Othon dedica a cena mais longa da peça a um personagem seu em O Jardim das Cerejeiras. Montar Tchekhov? Falta total de originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação.>
Assim como é total falta de originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação fazer uma peça rememorando a própria carreira. Toda hora tem gente fazendo isso. Assim como toda hora tem gente montando clássicos, fazendo projetos conectados com a tradição teatral de há séculos. Gente que está preocupada em fazer de maneira criteriosa, embasada, contundente, um espetáculo de teatro. Pesquisa, estudo, ensaios, treinos, laboratórios, tudo mais do mesmo do que vem sendo feito há muito tempo.>
Quando alguém monta um Tchekhov, ou uma dramaturgia contemporânea, ou uma criação coletiva, ou um Giansco Guarnieri, a mola mestra supõe-se ser o aprofundamento naquele texto, tema, assunto. Um mergulho nas entranhas da criação. Referências poéticas, visuais, teóricas. Discussões e mais discussões sobre os conflitos dos personagens, sobre a estrutura das cenas, a curva dramática, os subtextos, período histórico.>
Fazer teatro é repetição. Nos ensaios, como chamam os ses, e no ato de repetir técnicas, tradições, experiências, saberes. Se a equipe criativa tem o que dizer, se tem angústias, inquietações, e se está atenta às tragédias do seu tempo, inevitavelmente fará um espetáculo único, diferente, original.>
Há muito mais na construção de uma peça, na montagem de um espetáculo, que realmente importa para a consistência e relevância de um projeto. A partir daí, sim, poderiam-se estabelecer critérios sólidos. Contudo, imagino a equipe preocupada em dar conta dessas palavras tolas, fazendo malabarismos retóricos que convençam a comissão para se ter uma boa nota. O melhor teatro que tenho visto sempre está mais preocupado em fazer teatro do que em fazer inovação.>
Afinal, não existe nada de novo depois dos gregos.>
Aliás, há sim. A originalidade, singularidade, criatividade, expressividade, autenticidade e inovação dos critérios adotados por editais como o da Fundação Gregório de Mattos. E que não ajudam em nada a julgar a excelência de um trabalho teatral.>