Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 1 de junho de 2025 às 05:00
Desde que tinha cinco anos, o estudante Diego Castro conviveu com a obesidade. Com o tempo, o ganho de peso trouxe dores nos joelhos e até vergonha de sair de casa. “Na escola usava o casaco 100% do tempo como uma forma de esconder o corpo", conta ele, hoje com 18 anos. >
Foram muitas as tentativas de tratamento - do acompanhamento nutricional ao internamento em uma clínica especializada, onde ficou por 130 dias. Na unidade de saúde, chegou a perder 33 quilos, mas voltou a ganhar o dobro do peso. “É uma luta que tento vencer já tem muito tempo”, acrescenta. O cenário começou a mudar em janeiro deste ano, quando Diego - à época, com 17 anos, se submeteu a uma cirurgia bariátrica. >
Em quatro meses, ele já perdeu 30 dos 152 quilos que tinha antes do procedimento. “Minha recuperação foi maravilhosa. Não ei mal, não tive engasgo. Segui completamente as orientações do cirurgião: usar meia, andar, exercício de fisioterapia simples, medicação para trombose e, graças a Deus, ocorreu tudo bem. Esses quatro meses de operado têm sido maravilhosos também".>
O relato de Diego evidencia um cenário crescente no Brasil: a ocorrência de obesidade em adolescentes no país e as dificuldades para encontrar terapias efetivas para uma doença crônica que pode levar à morte precoce. Agora, esse público pode ar uma forma de tratamento que, até pouco tempo, enfrentava muitas restrições. >
Isso porque, na semana ada, o Conselho Federal de Medicina (CFM) atualizou as regras para a cirurgia bariátrica e metabólica em adultos e adolescentes, por meio da Resolução nº 2.429/25. Entre os novos parâmetros, uma das maiores novidades foi a ampliação da faixa etária em que o procedimento é possível. >
A partir de agora, a entidade ou a reconhecer a realização da cirurgia em pacientes a partir dos 14 anos, se tiverem Índice de Massa Corporal (IMC) maior do que 40 e associação com complicações clínicas - ou seja, alguma comorbidade grave, avaliada pela equipe multidisciplinar e com o consentimento da família. >
Além disso, os pacientes com idades entre 16 e 18 anos aram a ser enquadrados nos mesmos critérios estabelecidos para os adultos que podem se candidatar à cirurgia. Antes da mudança, pacientes menores de 16 anos só podiam ar pelo procedimento em caráter experimental (muitas vezes, por decisão judicial). >
De acordo com o cirurgião bariátrico Marcos Leão, fundador da Clínica Baros e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), as alterações propostas pelo CFM, são, na verdade, uma forma de acompanhar os avanços da Medicina. Algumas das regras que eram válidas estavam vigentes desde 1991. Para ele, as pessoas dessa faixa etária eram tratadas como jovens sem direitos no Brasil. >
“Não caiu a ficha das pessoas de que esses adolescentes têm um nível de sofrimento muito grande durante a obesidade e esse sofrimento é responsável por mudar a história de vida deles. Isolamento social, bullying, agressão verbal… Tudo isso vai repercutir a vida toda. Não fazer nada é muito pior do que a mais agressiva das cirurgias", alerta Leão, quando questionado sobre os riscos do procedimento. >
Pandemia>
No Brasil, cerca de 34% da população de crianças e adolescentes têm sobrepeso, obesidade ou obesidade grave, de acordo com o Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional, do Ministério da Saúde. Na Bahia, o percentual é um pouco menor, mas não é muito distante disso: são 31,05% dos indivíduos com idades até 18 anos, segundo o mesmo sistema, que leva em conta dados de 2025. >
Na avaliação do endocrinologista pediátrico Crésio Alves, presidente do Departamento Científico de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), os números são equivalentes a uma pandemia. “A obesidade é uma doença crônica, multifatorial e complexa", afirma ele, que é coordenador do serviço de endocrinologia pediátrica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (Hupes/Ufba). >
Cientistas estimam que, se nada for feito, em dez anos, o número vai ar a 50% das pessoas dessa faixa etária - ou seja, mais de 20 milhões de crianças e adolescentes. “Uma vez instalada, a obesidade é muito difícil de tratar. E, se não tratada, ela pode contribuir para complicações que vão agravar mais ainda", diz. >
Ele cita a possibilidade de desenvolver diabetes mellitus tipo 2, a alteração do colesterol e dos triglicérides do sangue, aterosclerose precoce (placas de gordura nas artérias, que, por sua vez, podem progredir para doença cardiovascular) e esteatose hepática (gordura no fígado, que pode levar a hepatite com fibrose).>
“O Departamento Científico de Endocrinologia da SBP vê com bons olhos essa medida, porque ela facilita o o de adolescentes com obesidade grave a um tratamento que vai impedir a progressão da doença para quadros mais graves. Isso não significa que queremos operar todo mundo, pelo contrário. Os limites são bastante rigorosos. Não se deve ter um limite tão rígido a ponto de impedir aqueles que precisam de se beneficiar do tratamento", pondera. >
Dificuldades>
A rotina do estudante Diego Castro, em suas próprias palavras, era de "uma pessoa sedentária". Além de ficar em muito em casa, tinha o hábito de ‘beliscar’ alimentos com frequência e costumava comer ‘muita besteira’. Chegou a ficar pré-diabético, mas não teve outras doenças associadas. >
Uma das muitas tentativas de controlar a obesidade foi o período em que ou internado em uma clínica da área. Ele entrou com 14 anos e fez aniversário de 15 anos enquanto estava lá dentro. Em todas as vezes, houve o reganho de peso. >
Até que Diego soube da possibilidade da cirurgia bariátrica por meio de seu irmão, que tinha feito o procedimento e considerou o tratamento bem-sucedido. "O motivo de eu ter optado, foi porque eu não me sentia bem comigo mesmo, porque tinha muito dificuldades de achar roupa e pelas diversas tentativas falhas de tratar essa doença. A maior chance, entre elas, seria a cirurgia", conta.>
Atualmente, quatro meses após a bariátrica, ele tem uma rotina de ir à escola, fazer academia à tarde e jogar vôlei de praia nos finais de semana. Para Diego, a mudança da ampliação de idade é importante. >
"A obesidade não espera, entende? Assim como eu operei com 17 anos pesando 152 quilos, alguém com 14 ou 15 pode estar com o mesmo peso, com risco para diabetes, gordura no fígado e, mesmo assim, tendo que esperar a idade mínima para realizar essa cirurgia. Eu não sou mais pré-diabético e a gordura no fígado diminui também", conta. >
Tipos de cirurgia>
Apesar do nome genérico, existem diferentes tipos de bariátrica. A resolução do CFM atualizou quais tipos estão liberados e até proibiu duas modalidades (a banda gástrica ajustável, conhecida como cirurgia ‘do anel’, e a de Scopinaro, que já tinham caído em desuso por terem resultados considerados insatisfatórios). Para adolescentes, contudo, apenas duas alternativas de cirurgia são consideradas seguranças e viáveis. >
"São as duas mais comuns: a do sleeve, em que você tira um pedaço do estômago, e o by gástrico em Y de Roux, que reduz o êstômago e faz um desvio para o intestino", afirma o cirurgião gástrico Marcos Leão. >
Além disso, depois do procedimento, o paciente deve ser acompanhado por um médico - seja o próprio cirurgião, um endocrinologista, ou um hebiatra (a especialidade que cuida de adolescentes). No primeiro ano, as consultas ocorrem no primeiro mês, depois de três meses e com seis meses. Após isso, am a ser anuais, como ocorre com qualquer cirurgia. >
"Mas a maioria nem fica assim, acaba vindo a cada dois, três anos. Uma coisa que eu faço é que eu saio seguindo eles. Me comunico e estou sempre cobrando. Mesmo que eles percam o convênio, os pacientes adolescentes que operei continuam sendo atendidos por mim e acompanhados sem custo pelo resto da vida, enquanto eu viver", diz Leão. >
Além de ser referência internacional na área, o cirurgião se tornou um dos ícones da bariátrica em adolescentes no país. Assim, ele tem experiência operando pacientes mais jovens, incluindo aqueles mais novos do que a antiga lei permitia. Nesses casos, o procedimento podia ser custeado por operadoras de saúde após determinação judicial ou de forma particular. >
Mesmo com números altos nessa faixa etária em comparação a outros colegas, ele reforça que os adolescentes ainda representam um público pequeno. "Esse ano, devo ter feito umas 80 cirurgias e devo ter operado uns sete ou oito adolescentes. Não chega a 10% e eu tenho uma das maiores casuísticas, por ser referência nisso. Se tenho quatro mil adultos, tenho 100 adolescentes operados. É muito pouco, mas é um pouco que tem aumentado". >
Em 2025, por exemplo, o cirurgião teve ao menos um paciente adolescente se submetendo à bariátrica por mês. Até alguns anos atrás, isso não acontecia. "Eu não tenho direito de negar tratamento para uma doença que está causando sofrimento", enfatiza. "Não vou dizer que a cirurgia é absoluta, infalível. Ainda assim, tem pessoas que, mesmo com a cirurgia potente, podem voltar a engordar. Mas é um cenário de exceção", completa. >
Causas>
Ainda que venha como uma forma de remediar um quadro que se torna mais frequente, a bariátrica é uma exceção de tratamento. Embora seja um procedimento considerado invasivo, já que faz uma mudança no trato gástrico, pode ser a única chance de evitar uma morte precoce em alguns casos. >
"A gente observa que pode ser melhor fazer a cirurgia do que tentar fazer a mudança de estilo de vida nesses IMCs muito aumentados, porque o risco de morte também é muito aumentado. A chance de essa criança chegar na vida adulta jovem, em torno dos 20, 30 anos, com capacidade produtiva, se mantiver esse quadro de obesidade, é muito difícil", pondera o médico endocrinologista Victor França, coordenador do curso de Medicina da Universidade Salvador (Unifacs). >
Uma mudança de estilo de vida não depende apenas do próprio paciente, mas também da família e de uma equipe multiprofissional, o que pode tornar o tratamento ainda mais desafiador. "Talvez nesses casos de gravidade extrema, seja mais prudente realizar a cirurgia", acrescenta. >
No entanto, o endocrinologista reforça que é preciso trabalhar a prevenção e, assim, combater as causas do aumento da incidência da obesidade entre adolescentes. De acordo com França, não se trata apenas da ocorrência de doenças genéticas que levam à obesidade, mas de uma cultura pouco saudável. >
"A gente tem que abrir os olhos para o que tem causado isso na população jovem. Alimentação hipercalórica e ultraprocessada, excesso de açúcares, sedentarismo. Hoje, as telas são o maior de diversão das crianças e dos jovens. O esporte parece estar sendo esquecido e há outros vieses que precisam ser analisados, como o medo e a violência. Eles acabam restringindo as pessoas a um ambiente menor, sem chances de realizar atividades e com um vínculo social menor. Isso tudo potencializa o aumento da doença", explica o médico. >
Dieta>
Depois da cirurgia, a dieta do paciente vai evoluir de forma progressiva, considerando a quantidade e a consistência. No período pós-cirúrgico, a dieta é líquida e em baixos volumes, de acordo com a nutricionista Isadora G. de Menezes, especialista em Obesidade e Transtornos Alimentares. >
"Com o ar das semanas, essa consistência evolui para semilíquida, pastosa, branda e a dieta normal. Esse progresso de consistência e volume deve avaliar também qual tipo de cirurgia bariátrica o paciente fez e a tolerância do adolescente", pontua. >
Além disso, a pessoa deve evitar comer grandes volumes, bebidas alcoólicas e comidas com grande percentual de lipídios e carboidratos. O objetivo disso, segundo a nutricionista, é evitar queixas gastrointestinais, comuns na chamada síndrome de dumping (esvaziamento gástrico rápido). >
Algumas mudanças podem ser permanentes. "O adolescente poderá ter uma alimentação saudável sem que seja um sofrimento. Faz-se necessário o acompanhamento nutricional, para que seja elaborado um plano alimentar de acordo com as necessidades nutricionais do paciente. A suplementação nutricional é necessária em diversos casos", acrescenta Isadora, que cita também a importância do histórico alimentar do adolescente. >
A incorporação das novas diretrizes para a cirurgia bariátrica é acompanhada, como mudanças do tipo, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Em nota, o Ministério da Saúde informou que acompanha as discussões sobre os critérios para a realização de cirurgias bariátricas e participa do diálogo com as sociedades médicas envolvidas.>
"O SUS ampliou o o à cirurgia bariátrica, com a realização de 11,2 mil procedimentos em 2024. Desde 2023, sete novos centros foram credenciados, totalizando 117 habilitados para a realização da cirurgia. Além disso, o valor reado aos serviços dobrou, como forma de incentivar esse atendimento", acrescentou o órgão federal.>
Na rede pública, a porta de entrada para o tratamento é nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), segundo a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab). Se o médico entender que há necessidade, pode encaminhar o paciente para o Centro de Referência Estadual para Assistência ao Diabetes e Endocrinologia (Cedeba), onde funciona o Núcleo de Obesidade, que atende pacientes de todas as idades. Lá, há uma equipe multiprofissional formada por médicos, nutricionistas e psicólogos, dentre outros profissionais, que fazem o acompanhamento integral do paciente.>
As mudanças na cirurgia bariátrica acontecem em um contexto em que as canetas emagrecedoras só crescem, em número de adeptos, no Brasil. Além das já conhecidas Ozempic, Wegovy e Saxenda, o Mounjaro (tirzepatida) chegou às farmácias brasileiras no último dia 15. A substância já foi comparada a uma bariátrica sem cortes, pelo percentual de gordura perdido se aproximar da cirurgia. >
No país, a liraglutida (Saxenda) e a semaglutida (Wegovy/Ozempic) são liberados para adolescentes maiores de 12 anos. "Essas medicações vieram para ajudar, porque a obesidade é uma doença crônica, embora não seja vista como tal. Mesmo com a cirurgia ou com os medicamentos mais modernos, nenhum deles oferece de fato a cura, mas tratamentos prolongados", diz o médico endocrinologista Victor França, coordenador de Medicina da Unifacs. >
O problema dessa classe de medicamentos é que eles são iníveis à grande parte da população brasileira, segundo o endocrinologista pediátrico Crésio Alves, do Hupes/Ufba e coordenador do Departamento Científico de Endocrinologia da Sociedade Brasileira de Pediatria. >
Enquanto o Ozempic custa pouco mais de R$ 1 mil, o Mounjaro vai de R$ 1,4 mil a R$ 1,7 mil, nas duas dosagens que já estão disponíveis no país (outras quatro ainda devem chegar ao mercado). Em todos os casos, o valor é mensal. "As pessoas de classe média alta podem usar esses medicamentos injetáveis que podem resultar numa perda de peso de até 21%. Tem pesquisas sobre novos medicamentos que promovem perdas de peso superior a 25%, ou seja, igual à bariátrica", diz. >
Nenhum dos remédios está disponível na rede pública ainda. "Eu trabalho na Ufba, no Hupes, e 100% dos pacientes não têm condição de adquirir os medicamentos de alto custo", conta. "É fácil falar em mudança de hábitos de vida, mas a modificação de estilo de vida isoladamente é difícil de ser seguida. Na falta de um medicamento, não seria justo que eles assem a adolescência inteira aumentando o peso e desenvolvendo complicações para quando fossem elegíveis (para a bariátrica). Elas chegariam já num estágio tardio". >
O cirurgião bariátrico Marcos Leão acredita que os medicamentos são uma possibilidade para quem tem obesidade leve. "Eles são um oxigênio em um mar que não existia nada. O tratamento era uma folha em branco. Mas eles são para quem tem dinheiro, porque são muito caros. E não adianta tomar por um mês, seis meses, um ano. Você vai perder peso e, na hora que parar, recupera todo o peso perdido", pontua. >